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A Acadêmicos do Grande Rio escolheu contar o mito tupinambá de criação do mundo, mostrar a força da onça e apresentar o felino como elemento central de brasilidade para o Carnaval deste ano.

Responsáveis pelo primeiro e único título da agremiação de Duque de Caxias na folia carioca em 2022, os carnavalescos Leonardo Bora e Gabriel Haddad agora assinam o enredo “Nosso destino é ser onça” na busca pelo bicampeonato.

Em 2023, a escola homenageou Zeca Pagodinho com o enredo “Ô Zeca, o Pagode Onde É que É? Andei Descalço, Carroça e Trem, Procurando por Xerém. Pra Te Ver, Pra Te Abraçar, Pra Beber e Batucar!” e conquistou a sexta colocação.

A agremiação caxiense é uma das quatro escolas do Grupo Especial do Rio a ter um livro como ponto de partida para seus enredos, ao lado de Porto da Pedra, Imperatriz Leopoldinense e Portela.

No caso da Grande Rio, a narrativa parte do livro “Meu destino é ser onça”, de Alberto Mussa, que reconstrói as narrativas tupinambás, cruza a história e chega na contemporaneidade ao apresentar a simbologia do onça nas manifestações culturais nacionais como símbolo de luta.

“É a onça apontada a partir de uma ótica que nos leva para mais de 15 mil anos atrás. É pensar essas raízes mais profundas do que é um ser brasileiro”, conta Bora em entrevista à CNN. “A onça é uma divindade, é o ser mais perfeito, segundo a visão dos antigos tupinambás, conforme o narrado no ‘Meu destino é ser onça’.”

O felino é o elemento criador do mundo responsável pela destruição e reconstrução através dos tempos, como cita o samba-enredo da agremiação para 2024: “Tudo acaba em fogaréu e depois transborda em mar”.

A escola quer mostrar como esse imaginário da onça como divindade está enraizado na cultura brasileira e se expressa em diferentes espaços, como a umbanda, o candomblé, o carnaval, o boi-bumbá de Parintins, o Movimento Armorial, as encantarias e as lutas sociais contemporâneas.

Daniel Werneck e Taciana Couto, casal de mestre-sala e porta-bandeira da Acadêmicos do Grande Rio, no desfile de 2023
Acadêmicos do Grande Rio terá o enredo “Nosso destino é ser onça” no Carnaval de 2024 / Alexandre Macieira/Riotur

Por que contar um mito tupinambá?

Para além do livro de Mussa, a dupla vai buscar representações da onça em outras culturas originárias da América Latina e defende, por meio do enredo, a difusão dos mitos dos povos indígenas, que são pouco vistos e estudados se comparados com outras narrativas sobre a criação do mundo.

“É interessante a gente pensar e rever alguns conceitos. A gente estuda a ‘Ilíada’, a ‘Odisseia’, que são epopeias gregas clássicas do colégio. Nomes dificílimos, episódios super mirabolantes. Da mesma forma que a gente lê as narrativas míticas do Antigo Testamento bíblico, com histórias fantásticas, nomes difíceis, episódios extraordinários, e isso não nos causa estranhamento”, cita Bora.

Para o carnavalesco, a Grande Rio, que é uma associação localizada em uma cidade que era território tupinambá no passado, tem a chance de popularizar essa narrativa usando da plataforma que tem enquanto escola de samba.

“A gente precisa naturalizar esses nomes, esse imaginário, essa terminologia, como felizmente as escolas de samba contribuíram para uma popularização de termos em línguas africanas nas suas narrativas que narram as cosmogonias, as divindades afro-brasileiras do candomblé”, lembrou.

Referências a outros carnavalescos

Leonardo Bora (esquerda) e Gabriel Haddad (direita) são carnvalescos da Grande Rio desde 2020
Leonardo Bora (esquerda) e Gabriel Haddad (direita) são carnvalescos da Grande Rio desde 2020 / Léo Queiroz/Rio Carnaval

A sinopse, que é o texto de apresentação do enredo para que os compositores possam escrever os sambas, dá pistas de que Bora e Haddad vão buscar em outros desfiles do Carnaval do Rio de Janeiro representações icônicas da onça.

Em entrevista à CNN, Bora confirmou que o cortejo contará com homenagens a Rosa Magalhães e Fernando Pinto, mas que não serão representações óbvias. “Seria um atentado contra essas pessoas. Não vai ter nenhum bonecão”, brincou o carnavalesco, usando um termo do jargão da folia para descrever esculturas grandes com representações literais nos carros alegóricos.

Ele citou, por exemplo, desfiles como “Como era verde o meu Xingu” (Mocidade 1983) e “Tupinicópolis” (Mocidade 1987), de Pinto, que traziam a onça numa figura central, como o abre-alas e a ala das baianas.

Expectativas para o desfile

O enredo sobre a onça estava na gaveta da dupla desde 2017, quando eles ainda estavam fazendo os desfiles da Acadêmicos do Cubango — escola de Niterói que hoje está na Série Prata, a terceira divisão da folia carioca.

Bora confessa, no entanto, que o enredo teve que ser engavetado porque tanto os carnavalescos quanto a comunidade da Grande Rio sentiam uma necessidade de falar sobre temas muito caros à própria escola e à cidade de Duque de Caxias. Foi com esse objetivo que eles montaram o que Bora chamou de “trilogia não oficial”.

Desfile da Grande Rio de 2022
Desfile da Grande Rio que conquistou o título em 2022 / Marco Antonio Teixeira/Riotur

Em 2020, a agremiação contou a história de Joãozinho da Gomeia, notável pai de santo da cidade. Em 2022, ano do título, eles apresentaram a força de Exu conectado com Gramacho, bairro da cidade da Baixada Fluminense. Em 2023, saudando Ogum, a Grande Rio celebrou Zeca Pagodinho, que vive em Xerém, outro bairro de Duque de Caxias.

“Era hora de olhar com mais cuidado para esse projeto”, disse Bora sobre a ideia de transformar o livro de Mussa em enredo.

Ele afirma acreditar que a narrativa de 2024 propiciou um samba-enredo valente, guerreiro, que conta uma história contundente de luta e dialoga com a comunidade quando apresenta a onça nos pontos de umbanda, por exemplo.

“Aquilo explode, a humanidade incorpora, canta, berra, vive isso de maneira muito intensa. Eu acho que o samba está sendo muito cantado, muito vivenciado, incorporado pela escola, a gente vê os ensaios de quadra, com certeza vai ver no ensaio técnico e vai ver na Avenida”, defendeu Bora.

A expectativa dos carnavalescos é de que a obra embale um desfile que provoque, sobretudo, duas coisas em quem assistir à escola: encantamento e reconhecimento. A primeira, em função da narrativa mítica e do universo mágico apresentado pela escola; a segunda, pela conexão com a cultura popular brasileira.

“A gente espera que todo mundo se sinta a onça, se conecte com a mensagem do enredo, que é muito profunda, que é muito forte, e que se deixa levar pela visualidade, pela musicalidade, pela força da apresentação”, disse Bora.



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