Catarinense Rogério Sganzerla é referência no cinema nacional mesmo 20 anos após sua morte

“A ousadia estética, o pulsar permanente de realidades brasileiras, além do olhar revelador de suas lentes, fez de Rogério Sganzerla um dos maiores cineastas do nosso tempo”. Esse é o relato do então ministro da Cultura Gilberto Gil por ocasião da morte do cineasta catarinense, há 20 anos, sobre a importância de seu legado para o Brasil.

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O catarinense nascido em Joaçaba, em 4 de maio de 1946, viveu em Santa Catarina até meados dos anos 1960, quando se mudou para São Paulo, onde cursou faculdade de Direito e de Administração e foi crítico de cinema.

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Nesse período, e com apenas 22 anos, filmou a obra-prima O Bandido da Luz Vermelha (1968), clássico do cinema marginal inspirado nos crimes do assaltante também catarinense João Acácio Pereira da Costa. Era o começo de uma obra de cunho autoral.

Sganzerla morreu, aos 57 anos, em 9 de janeiro de 2004, em decorrência de um câncer no cérebro. Deixou 21 filmes, oito sobre ou diretamente influenciados por nomes como Orson Welles, Noel Rosa, Jimi Hendrix e Oswald de Andrade. Ao lado de Helena Ignez, com quem foi casado por 34 anos, trilhou uma trajetória única no panorama do cinema brasileiro.

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A Mulher de Todos (1969), Copacabana, Mon Amour (1970), Sem Essa Aranha (1970), Abismu (1977), Nem
Tudo É Verdade (1986) e Signo do Caos (2003), o último e já quando estava doente, são filmes contundentes que dialogam de forma crítica e criativa com a realidade brasileira.

Um menino que brincava de mágico e de hipnotizar os amigos

Rogério Sganzerla foi uma criança que até os cinco anos praticamente não falava. No entanto, aos sete lançava um livro de contos e aos 11 aprontava o primeiro roteiro de longa-metragem. Brincar de mágico e de hipnotizar os amigos eram diversões preferidas do pequeno catarinense que passou a infância no Meio-Oeste.

A cinefilia de Sganzerla aflorou aos 13 anos, no Colégio dos Irmãos Maristas, em Florianópolis, onde o padre Andreotti, ao perceber que seu aluno não tinha jeito para atividades físicas, o estimulou a frequentar o cineclube, que exibia filmes de John Ford e René Clair a Rossellini. Esses detalhes sobre a vida do cineasta podem ser conferidos na Ocupação Rogerio Sganzerlaexposição realizada pelo Itaú Cultural.

A escolha de Rogério pelo cinema se deu em 1961, na mudança para São Paulo, após sobreviver a um trágico acidente de carro em Joaçaba. Na ocasião, com 15 anos, decidiu se instalar numa pensão e virou “rato” da Cinemateca. Enquanto isso, cursava Direito no Colégio Mackenzie, curso que abandonou dois anos depois, ao ser convidado por Décio de Almeida Prado para escrever no festejado Suplemento Literário do Estadão.

Mais tarde, com Maurice Capovilla, criou uma página de cinema no Jornal da Tarde, tornando-se, ainda, redator da revista Visão, da Folha da Tarde e do Última Hora.

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O exílio em Londres

No processo de experimentação e diálogo com o movimento tropicalista (estética artística surgida para denunciar a repressão), Rogério Sganzerla decidiu fundar a produtora Belair. Era o ano de 1970 e em seis meses a empresa fez seis filmes de baixo orçamento, como Copacabana Mon Amour, com trilha de
Gilberto Gil.

Mas a ditadura militar não permitiu a finalização e distribuição. O cineasta catarinense não vê outra alternativa senão deixar o país, e vai se exilar em Londres.

Em seu legado, também estão documentários e críticas de cinema em jornais do centro do país: “A obra de Sganzerla é muito maior do que O Bandido da Luz Vermelha e precisa ser mais conhecida pelo público e estudada na academia”, sugere o multiartista e professor universitário Demétrio Panarotto.

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Doutor em Literatura pela Universidade Federal de Santa Catarina e professor na Universidade do Sul de Santa Catarina, Panarotto acredita que a internet permite superar algo que anos atrás era mais difícil, o acesso às obras. Para o professor, os cineclubes existentes em Santa Catarina e mesmo o governo do Estado deveriam estimular programações envolvendo o nome Sganzerla.

“Assim como Glauber Rocha, Rogério Sganzerla foi um nome muito ativo. Acredito que, se vivo fosse, estaria pleiteando e discutindo a questão do cinema brasileiro. Nos últimos seis anos, o país enfrentou um período complicado acerca das questões democráticas, e certamente estaria fazendo seus filmes de acordo com aquilo que permeia seu estilo de obra”, diz o professor.

“Glauber Rocha se voltava para o sertão e Sganzerla era mais próximo das cidades”

Demétrio Panarotto explica que foi através do doutorado com foco em Glauber Rocha que entrou em contato com o trabalho de Rogério Sganzerla. O futuro professor queria saber como eram as relações entre o Cinema Novo e o Cinema Marginal, entender essas conexões em meio ao processo político do Brasil na década de 1960 e como isso impactava uma obra cinematográfica.

O então pesquisador logo percebeu: enquanto Glauber estava mais voltado aos temas do sertão (Deus e o diabo na terra do sol, 1964), Sganzerla se mostrava mais próximo das cidades (O bandido da luz
vermelha, 1968). Para o professor, Sganzerla foi um nome muito forte também no pensar a questão do cinema.

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A partir do Neorrealismo Italiano (Roberto Rossellini, Vittorio De Sica e Luchino Visconti, todos influenciados pelos filmes da escola do realismo poético francês), da Nouvelle Vague (movimento
artístico do cinema francês inserido nos ares de contestação dos anos 1960) e do Cinema Novo (“uma câmera na mão e uma ideia na cabeça” para atacar o industrialismo cultural e a alienação das populares chanchadas) no Brasil, “os cineastas partiram da perspectiva de não apenas trabalhar no set de filmagens, mas também se propor a escrever e a falar sobre o cinema”.

Do Cinema Marginal à produção brasileira atual

Em suas várias fases e movimentos ao longo da história, o cinema brasileiro sempre viveu de sobressaltos. Uma atividade cara, dependente do financiamento oficial de governos que, às vezes, desprezam a cultura, não é fácil de ser levada adiante. Mas, como se prega: o cinema brasileiro é um forte.

— A falta de salas de exibição para a produção nacional, por exemplo, continua sendo um dos maiores obstáculos pela concorrência com os blockbusters americanos. Enquanto títulos como “Barbie” ou os filmes da Marvel ocupam dezenas de salas na mesma cidade, durante semanas, o filme nacional briga por alguns poucos dias, em uma única sala e horários reduzidos —, observa a jornalista, escritora e crítica de cinema Brígida Poli.

A jornalista considera que a reativação do Ministério da Cultura ressurge como uma esperança de que o nosso cinema ganhe fôlego. Em dezembro, o Plenário do Senado aprovou um projeto de lei que recria a cota de exibição para filmes brasileiros, com validade até 2033. A chamada “cota de tela” tinha acabado em 2021, quando expirou o prazo de 20 anos previsto por uma medida provisória.

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Conforme a Agência Senado, “o texto determina que as salas comerciais sejam obrigadas a exibir obras brasileiras de longa-metragem, observados o número mínimo de sessões e a diversidade de títulos, atribuído à Agência Nacional de Cinema (Ancine) o controle do cumprimento da medida”.

“Ganhamos sobrevida, perdemos identidade. O
que diria disso, nosso grande Rogério Sganzerla?”

— Não resolve, mas ajuda. Alguns filmes brasileiros conseguiram ótimas bilheterias nos últimos anos. A maioria, comédias com personagens vindos da televisão. Desde o cinema údi-grúdi de Sganzerla, melhoramos também em técnica (já não se ouve mais a eterna reclamação de áudio ruim dos filmes nacionais, por exemplo) — observa Brígida, ex-coordenadora do Núcleo Globo da afiliada da Rede Globo, em Santa Catarina, e também autora do livro “As mulheres da minha vida – Crônicas” (Ed. Insular) e do texto dramático “A mulher na Janela”.

Para a jornalista, os 20 anos que marcam a morte do cineasta catarinense também servem para uma reflexão. — O dilema é que, em busca de um cinema viável e lucrativo, perdemos um jeito próprio de fazer filmes. A transgressão desapareceu, dando lugar a histórias e linguagem mais acadêmicas, mais palatáveis para o grande público. Ganhamos sobrevida, perdemos identidade. O que diria disso, nosso
grande Rogério Sganzerla? — pergunta Poli.

O pensamento de Sganzerla

Orson Welles, Noel Rosa, Jimi Hendrix e Oswald de Andrade são artistas que cativaram Rogério Sganzerla. Ao todo, oito de seus 21 filmes são sobre eles ou foram diretamente influenciados por eles.

“Orson Welles me ensinou a não separar a política do crime. Jean-Luc Godard me ensinou a filmar tudo pela metade do preço. Em Glauber Rocha conheci o cinema de guerrilha feito à base de planos gerais. Fuller foi quem me mostrou como desmontar o cinema tradicional através da montagem… Porque o que eu queria mesmo era fazer um filme mágico e cafajeste cujos personagens fossem sublimes e boçais, onde a estupidez – acima de tudo – revelasse as leis secretas da alma e do corpo subdesenvolvido”.

“Quis fazer um painel sobre a sociedade delirante, ameaçada por um criminoso solitário. Quis dar esse salto porque entendi que tinha de filmar o possível e o impossível num país subdesenvolvido… Estou filmando a vida do Bandido da Luz Vermelha como poderia estar contando os milagres de São João Batista, a juventude de Marx ou as aventuras de Chateaubriand. É um bom pretexto para refletir sobre o Brasil da década de 60. Nesse painel, a política e o crime identificam personagens do alto e do baixo mundo”, afirmava o cineasta.

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“Tive de fazer cinema fora-da-lei aqui em São Paulo porque quis dar um esforço total em direção ao filme brasileiro liberador, revolucionário também nas panorâmicas, na câmara fixa e nos cortes secos. O ponto de partida de nossos filmes deve ser a instabilidade do cinema – como também da nossa sociedade, da nossa estética, dos nossos amores e do nosso sono. Por isso, a câmara é indecisa; o som fugidio; os
personagens medrosos. Nesse país tudo é possível e por isso o filme pode explodir a qualquer momento”.

Trechos de Manifesto, crítica feita à época de O Bandido da Luz Vermelha (1968).

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