O ano de 2023 termina com um saldo de oito Terras Indígenas (TIs) demarcadas – pouco mais da metade das 14 que o movimento indígena havia pleiteado para os 100 primeiros dias de governo. Além disso, neste mês de dezembro o Congresso Nacional derrubou vetos do presidente Lula (PT) e aprovou a Lei 14.701/23, apelidada de Lei do Marco Temporal ou, como dizem entidades dos povos originários, Lei do Genocídio Indígena. O texto foi promulgado nesta quinta-feira (28) pelo presidente do Senado, Rodrigo Pacheco (PSD-MG).

É por isso que, segundo Dinamam Tuxá, da coordenação executiva da Articulação dos Povos Indígenas do Brasil (Apib), a entrada de uma Ação Direta de Inconstitucionalidade (ADI) no Supremo Tribunal Federal (STF) no intuito de anular a lei será “prioridade número um” do movimento no início de 2024. 

Apesar de batizado como Lei do Marco Temporal, a nova legislação carrega outros ataques aos direitos indígenas que vão além da tese de que só podem ser demarcados os territórios ocupados por estes povos até 1988 – entendimento este que já é considerado inconstitucional pelo STF. 

Entre os outros artigos, estão a regulamentação da cooperação entre indígenas e não indígenas para exploração de atividades econômicas dentro dos territórios; maior burocratização do processo demarcatório; e a definição que o direito de usufruto exclusivo dos povos originários às suas terras não pode se sobrepor ao interesse “da política de defesa”.  

Promessa não cumprida 

Apesar de defender demarcações de forma ampla, na lista das 14 TIs que o movimento entregou ao presidente Lula, ainda na transição de governo, tinha aquelas cujo processo demarcatório estava tecnicamente encaminhado. Faltava só a canetada da homologação.  

“Houve um comprometimento do presidente Lula e toda sua equipe em demarcá-las. Um comprometimento público, inclusive, [ocorrido] durante nosso Acampamento Terra Livre”, recorda Tuxá, que é também assessor jurídico da Articulação dos Povos e Organizações Indígenas do Nordeste, Minas Gerais e Espírito Santo (Apoinme).  

A falta de demarcação das outras seis TIs em 2023, ressalta Dinamam, “não se dá por caráter técnico, mas por questões políticas”. 

“Houve uma coalizão de forças para que o presidente Lula fosse eleito. Da mesma forma que houve o apoio dos povos indígenas, tem outros agentes, de grande força econômica”, pontua.

Dinamam diz compreender que “o presidente necessita de governabilidade no parlamento. Só que esse preço está saindo muito caro para os povos indígenas”. De acordo com o dossiê “Os invasores” do De olho nos ruralistas, integrantes do Congresso e do Executivo são donos de cerca de 96 mil hectares sobrepostos a terras indígenas.  

“Não vamos aceitar negociações. Nós somos parceiros, não somos submissos. E somos um dos primeiros movimentos a declarar isso abertamente para o presidente”, afirma o coordenador da Apib. 

“O avanço que tivemos foi de ocupar cargos estratégicos e a criação do Ministério dos Povos Indígenas. Mas em termos de demarcação, fiscalização e proteção territorial ainda falta muito a ser feito”, cobra Dinamam Tuxá.  

Ao Brasil de Fato, o Ministério da Justiça informou que recebeu 30 processos de demarcação de TIs em 2023 e que destas, duas foram foram homologadas por decreto presidencial. “As demais encontram-se nas etapas de análise técnica e jurídica”, sem previsão de finalização, disse a pasta. De acordo com a Funai, hoje há 761 territórios indígenas em diferentes etapas de regularização. 

As terras demarcadas e os conflitos em curso 

Entre as TIs demarcadas, seis foram homologadas em abril, durante a participação de Lula no Acampamento Terra Livre, a maior mobilização indígena do Brasil. Outras duas em setembro, no dia da Amazônia. Foram elas: Arara do Rio Amônia (AC), Kariri-Xocó (AL), Rio dos Índios (RS), Tremembé da Barra do Mundaú (CE), Uneiuxi (AM), Avá Canoeiro (GO), Acapuri de Cima (AM) e Rio Gregório (AC).  

Cacique desta última no Acre, Tashka Yawanawá conta que Rio Gregório está efetivamente ocupada por seu povo desde 2003. O que mudou desde a homologação neste ano “é a segurança”, diz. “Não sentimos mais ameaça daqueles que diziam ser os donos da terra. Essa é a grande mudança, de a gente dormir tranquilo, sem ameaça de perder esse pedaço de terra que é tão importante para o nosso povo”, resume.    

Essa tranquilidade, no entanto, ainda é exceção no Brasil. No último 22 de dezembro, o cacique Lucas Kariri-Sapuyá, de 31 anos e do povo Pataxó Hã-hã-hãe, foi assassinado no sul da Bahia. Em Roraima, um ofício da Funai demonstra preocupação com a “desmobilização gradual” de militares na terra Yanomami, enquanto garimpeiros voltam ao local.    

No Mato Grosso do Sul, um grupo Guarani Kaiowá, bem como uma antropóloga, um engenheiro florestal e um jornalista canadense foram espancados por homens encapuzados depois que indígenas retomaram o território tradicional Pyelito Kue, sobreposto pela Fazenda Maringá.   

Lembrando que as oito TIs homologadas em 2023 quebram um jejum de demarcações no país instaurado desde 2018, Dinamam Tuxá salienta que o acirramento dos conflitos socioambientais ainda não foi contido.   

“O discurso do governo federal para combater a crise climática está se esvaziando. Ao mesmo tempo que o faz, o Brasil ingressa na Opep+ [Organização dos Países Exportadores de Petróleo], faz leilões para a exploração de petróleo em bacias importantes”, critica o representante da Apib. “Uma das maiores ações para combater a emergência climática é, justamente, a demarcação de terras indígenas”.  

“Genocídio legislado” 

Nos cálculos da Apib, a partir do momento em que uma terra indígena começa seu processo demarcatório com os estudos de identificação, ela leva em média 30 anos para ser regularizada. Com a Lei 14.701/23 aprovada no último 14 de dezembro, a entidade indígena prevê que o tempo vai triplicar.

“Além disso, querem beneficiar invasores de terras indígenas que só serão removidas mediante indenização prévia. Ou seja, vão ser premiados aqueles que invadirem terras indígenas”, complementa Dinamam Tuxá.  

Para ele, a aprovação da lei – cuja votação começou na Câmara dos Deputados ao mesmo tempo em que o STF julgava improcedente o marco temporal – foi um revide da bancada ruralista. “O movimento fez um enfrentamento muito forte contra o Bolsonaro e a conta está chegando”, avalia. 

“Para esta luta, contávamos com um apoio sem precedentes do Executivo, mas muitas vezes nossas pautas não têm apoio político até da base governista”, alerta Dinamam. “O discurso não está batendo com a prática”. 

O ministro da Agricultura, Carlos Fávaro, se exonerou temporariamente do cargo no último 12 de dezembro para, enquanto senador, apoiar a indicação de Flávio Dino como ministro do STF. Aproveitou para esticar sua atuação como parlamentar e votar a favor do então PL do Marco Temporal.  

Questionado, o ativista indígena diz que as prioridades do movimento em 2024 são derrubar a “Lei do Genocídio Indígena” por meio do STF; fazer articulações internacionais para, entre outras ações, colocar o ex-presidente Jair Bolsonaro (PL) para ser julgado no Tribunal Penal Internacional; denunciar empresas e pessoas que financiam “a destruição e os conflitos socioambientais no Brasil” e, como ponto central, conquistar novas demarcações de terras.  

Edição: Rodrigo Durão Coelho






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